Anjos e Demônios da Ciência
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No filme, os cientistas são inocentes e os cardeais são sábios
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Como não podia deixar de ser, hoje escrevo sobre o filme “Anjos e Demônios”, baseado no romance homônimo de Dan Brown.
Para os leitores que não tiveram a oportunidade de assistir ao filme ou ler o livro, a narrativa trata de um complô para assassinar a cúpula da Igreja Católica durante a escolha de um novo papa. Uma bomba extremamente poderosa foi escondida em algum lugar da famosa basílica de São Pedro, no Vaticano, e irá explodir, a menos que nosso herói, o professor de Harvard especialista na interpretação de símbolos Robert Langdon (Tom Hanks), consiga desvendar uma série de mistérios e pistas.
A bomba, e aqui entra o tema principal do filme, é um artefato que usa uma amostra de antimatéria criada pelos cientistas do Cern, o centro europeu de física de partículas, a casa do LHC, o gigantesco colisor de partículas que deverá entrar em funcionamento em alguns meses. O filme retrata o conflito entre os magistérios que supostamente disputam o domínio da sociedade: a religião e a ciência.
A cena inicial se passa no templo da ciência, onde os seus sacerdotes, os cientistas do Cern, preparam-se para acionar a maior máquina já construída na história. A bela física italiana Vittoria Vetra (Ayelet Zurer) e seu colega, um padre físico (vejam que essa união não é impossível), planejam isolar um pouco de antimatéria.
O ponto é que antimatéria é extremamente rara: o Universo é composto quase exclusivamente de matéria, os átomos formados de partículas elementares como elétrons e quarks (componentes dos prótons e nêutrons). Ainda bem. Partículas de matéria desintegram-se imediatamente quando entram em contato com partículas de antimatéria, transformando-se em raios gama, uma forma de radiação eletromagnética de altíssima energia. Se você apertasse a mão da sua antipessoa, o Brasil desapareceria em instantes.
A bomba que ameaça destruir o Vaticano é feita de antimatéria, roubada do experimento no Cern. No livro, fica claro que a intenção dos físicos é recriar o Big Bang, o momento da criação, transformando mistério em ciência. O padre físico quer provar que Deus existe; os cientistas, que a ciência explica até mesmo o mistério da criação sem a necessidade de interferências sobrenaturais. No meio tempo, a liderança da Igreja Católica pode desaparecer do mapa: o fim da religião pelas mãos da ciência.
Não vou contar o que acontece no filme, para não estragar a surpresa.
Mesmo que o enredo não faça muito sentido do ponto de vista científico, Dan Brown consegue trazer o conflito entre ciência e religião ao grande público, o que acho notável.
Infelizmente, no filme vemos uma tendência a manter estereótipos que me parecem injustos. Existe uma aura de inocência nos cientistas e de sapiência nos cardeais, como se cientistas fossem imaturos e irresponsáveis perante a autoridade moral da igreja.
O templo da ciência parece um brinquedo perante o majestoso templo da igreja. (E, em termos de beleza, não há mesmo o que comparar. Mas a questão aqui é a função de cada um.)
Mas o que define a sociedade moderna? Os “brinquedos” digitais da ciência ou a moral ancestral da religião?
A sabedoria e a moralidade não são província exclusiva da religião. Muitas pessoas sábias e altamente morais não são religiosas. Todos sabem que matar é errado (mesmo que as religiões se esqueçam disso com frequência), e a maioria sabe que devemos amar o nosso próximo. Os desafios que enfrentaremos ao longo deste século, do aquecimento global à crise de energia, serão resolvidos nos templos da ciência e não nos belos templos da religião.
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MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro “A Harmonia do Mundo”
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1406200902.htm
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