O Testamento

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O Testamento

Tempos atrás eu sugeri que se fizesse uma mudança na liturgia que marca a passagem dos anos da vida de uma pessoa, que não mais se apagassem as velinhas, como se a morte dos anos passados fosse coisa a ser celebrada, mas que se acendesse uma única vela, na esperança de um futuro semelhante ao da vela, de luz e tranquilidade.

O tempo passou e chegou a hora de reacender a minha vela. Que pensamentos pensarei? Acho que vou meditar sobre o meu testamento. É uma ideia da qual não se pode fugir, quando se dá conta de que a cera que resta é muito menos que a cera que já se queimou.

O testamento é o que restou, depois de feitas todas as somas e subtrações. É aquilo que se passa às mãos dos que continuarão a viver depois de nós, com um pedido: “Por favor, na minha ausência, não se esqueça de regar a minha planta…” Claro que não estou pensando nas coisas que fui ajuntando ao passar dos anos. Elas não têm a menor importância. Não têm o poder de nos tornar nem mais sábios nem mais felizes. Porque sabedoria e felicidade são coisas que crescem por dentro, enquanto as coisas juntadas ficam de fora. Pelo contrário: já vi vidas e amizades perturbadas e destruídas pela disputa de uma herança.

Mas aí me descubro ansioso. Porque a distribuição de propriedades e objetos é coisa simples – basta que se escreva um testamento. Mas aquilo que eu realmente desejo dar para os meus filhos não pode ser dado. É coisa que só pode ser semeada, na esperança de que venha a crescer.

Acho que a minha situação se parece com a do Vinicius de Moraes. Também ele queria deixar um testamento.

Não de coisas, como se fosse um ritual eucarístico, em que o que se dá aos outros são pedaços do próprio corpo, na esperança de que eles comerão e gostarão. No fundo, o que se deseja é a imortalidade: continuar vivos naqueles que comem o que lhes oferecemos como herança.

Mas só existe um jeito de dar ao outro aquilo que é a carne da gente:
falando.

Vejam só que coisa mais pobre: uma herança cujas coisas deixadas são palavras.

É o que desejo deixar aos meus filhos como herança: a imagem da vela que queima na solidão silenciosa, sem se deixar perturbar pela loucura barulhenta e apressada dos homens de ação e sucesso; sob a luz da vela, no gozo da tranquilidade solitária, acordar o poeta que dorme em nós. O que não é garantia de felicidade. Mas é garantia de beleza e de serenidade. E que coisa mais pode alguém desejar receber como herança? ..
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Rubem Alves é escritor. educador e psicanalista.
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Publicado em: SinapsesLinks
http://sinapseslinks.wordpress.com/
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Um comentário sobre “O Testamento

  1. Eu sou fã de Rubem Alves..e tudo que já li dele me encantou, mas este singelo depoimento ultrapassou a emoção de leituras anteriores porque, na minha idade, é claro que algumas vezes a palavra testamento me veio a mente..Veio forte quando meu pai deixou o dele..favorecendo minha mãe…Foi difícil entender porque meu pai suspeitou que pudéssemos deserdar minha mãe e assim nos deserdou a nós.. Hoje, passados três anos de sua ausência, percebo que ele fez o melhor.. Para meus filhos gostaria de deixar a mesma vela de que fala o iluminado Rubem…e perceber lá, a distância, que eles farão muito do que eu ensinei…de que se tornarão maduros e auto-suficientes, e que na verdade a falta que farei jamais será a da propriedade, da poupança, do ouro, mas das minhas palavras…. O que deixo para meus filhos é so uma coisa: a alegria de viver e a batalha do dia a dia na busca da sabedoria…

    • Edna, Faz tempo que estamos na Estrada. Continuo sendo um felizardo de ter a sua linda Amizade. Conheço seu Coração. Conheço a Lutadora chamada Edna… Repasso para você as Palavras do Espírito José Grosso…de loga data: “Não te preocupes, a boa semente foi plantada no Coração dos seus filhos.” Verdade pura. Recebe meu beijo carinhoso. Leal – aprendendo com você.

  2. Acho que fazer um testamento é para pessoas maduras, racional e emocionalmente.
    Por que? simplesmente porque na emoção e imaturidade, pode-se cometer injustiça.
    Na verdade, a gente não deveria deixar nada de material como herança e sim o bom exemplo, o espirito de luta e visão de equidade. Um legado seria a lembrança de que sempre fizemos tudo para acertar, mesmo errando…

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