A porta de saída
Sidarta Ribeiro
Ciência e religião aproximam-
se nos relatos de
experiências de quase-
morte: visões luminosas,
desconexão mente-
corpo e retrospecto
da própria vida.
Se para morrer basta estar vivo, a certeza
de coisa tão incerta pode ser insuportável.
Talvez por isso a crença na vida após
a morte seja pilar de tantas religiões importantes.
No cristianismo e no islã, a
morte é seguida de uma nova vida, eterna
e roteirizada conforme a somatória
dos acertos e erros do defunto. Sofre-se
no inferno a retribuição pelas maldades
praticadas, assim como a recompensa
da generosidade é o céu. Já na umbanda,
no espiritismo e no hinduísmo, acredita-
se num ciclo de reencarnações em
que cada nova existência é afetada
pelos atos cometidos na vida precedente.
E o que pensa a ciência sobre a vida
após a morte? A bem da verdade, nada.
É decomposição bioquímica, simplesmente.
A vida é uma só e quando termina
é para sempre. As diferentes concepções
religiosas? Noções arcanas e supersticiosas,
criadas para pacificar a fera
humana e dominar o medo do fim. O
além é apenas um grande escuro total, e
ponto final.
Uma síntese entre posições tão distintas
talvez tenha raiz no fenômeno da quase-
morte, relativamente comum em pacientes
ressuscitados [Van Lomell et al.
(2001), Lancet 358:2039]. A experiência
subjetiva de quem quase foi mas voltou
para contar a história varia conforme os
valores e expectativas dominantes de
cada cultura [Kellehear (1993), J. Nerv.
Ment. Dis. 181:148]. Os relatos incluem
euforia, desconexão mente-corpo, retrospecto
panôramico da própria vida, encontro
com pessoas queridas já falecidas,
um túnel com saída luminosa e a passagem
para um mundo fantástico [Greyson
& Stevenson (1980), Amer. J. Psych.,
137:1193].
Experiências de quase-morte são freqüentemente
concomitantes com insuficiência
cárdio-pulmonar, resultando em falta de
oxigenação. As milagrosas “ressurreições”
em pacientes sem sinal eletroencefalográfico
detectável [Sabom (1998), Zondervan
Publishing House 37] sugerem que
exista um longo intervalo entre o início da
degeneração neuronal e a conclusão da
morte da consciência. É possível que
distorções na percepção do tempo causadas
por hipóxia [Jamin et al. (2004),
Aviat. Space Environ. Med. 75:876] transformem
alguns minutos de quase-morte
numa experiência aparentemente eterna.
Durante esse período, o cérebro perde
progressivamente contato com o real,
substituindo a cena externa por aquilo
que a consciência viveu ou espera encontrar
ao morrer, como a luz na saída do
túnel que tanto simboliza morte quanto
nascimento. O cérebro agonizante sonha
desesperadamente que ainda vive, dominado
pelas representações marcantes
que colheu em vida, boas ou más. Se
estas incluem a crença na reencarnação,
o processo se prolonga numa sucessão
de sonhos dentro de sonhos.
E assim convergimos da neurobiologia
para a moral religiosa: praticar o bem
para não sofrer depois. Até que morram
todos os neurônios, se esgotem os ciclos
de Samsara, desabe o mundo dos sonhos
e a consciência possa, enfim, adentrar o
Nirvana. Fundir-se com Olorum para já
não ser de lugar nenhum.
SIDARTA RIBEIRO é Ph.D. em neurobiologia
pela Universidade Rockefeller e pesquisador
do Instituto Internacional de Neurociências de
Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade
Duke (2000-2005) investigando as bases
moleculares e celulares do papel do sono e
dos sonhos no aprendizado.
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❖ Publicado em:
❖ Segunda 07nov2022
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