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República do Acre

Até o final do século 19, a região era um canto esquecido da Amazônia que não interessava a ninguém. Mas, com o surto da borracha, se transformou num paraíso que, em menos de dez anos, foi palco de uma série de conflitos que quase levaram Brasil e Bolívia à guerra.

Fernando Granato

Segunda metade do século 19. O Brasil tornara-se um Império independente de Portugal. O país crescia com a agricultura para exportação, com os imigrantes que vinham para substituir os escravos e caminhava, a passos trôpegos, é verdade, em direção à República.

Mas esse era o retrato do Brasil atlântico, o Brasil com vista para o mar. A 5 mil quilômetros dali, um outro país existia, um país que, de tão esquecido, estava para ser abandonado.

Em 1867, dom Pedro II assinou o Tratado de Ayacucho e cedeu o território do atual estado do Acre à Bolívia. Um naco de floresta de 150 mil km² habitados por tribos indígenas e sertanejos que viviam mal-e-mal de explorar castanha, madeira e látex.

Na virada do século, no entanto, a coisa mudou. A nascente indústria automobilística americana elevou a demanda por borracha a índices estratosféricos, fazendo da exploração de látex um negócio para lá de atrativo. Em 1899, o governo boliviano lembrou-se de seu pedaço de floresta e resolveu abrir um posto alfandegário na vila de Puerto Alonso (a maior da região, onde hoje fica a capital do estado, Rio Branco) – e passou a cobrar taxas de extração e transporte dos seringueiros. E nada como impostos para deixar brasileiro descontente. As medidas irritaram os seringueiros e provocaram atritos entre as autoridades e os moradores da floresta.

Nesse clima, o jornalista espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias, redator do jornal Província do Pará e também funcionário do consulado boliviano em Belém, ficou sabendo que o governo da Bolívia tinha na gaveta um projeto para arrendar o controle da região para uma empresa americana. De posse dessa informação, Galvez passou a insuflar os proprietários de seringais a se rebelarem.

O grau de insatisfação era tamanho que o movimento conseguiu contagiar praticamente toda a população local. Apoiados pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior – que forneceu armas, munições e um barco especialmente equipado com um canhão, além de uma guarnição de 20 homens -, os seringueiros capturaram os poucos soldados bolivianos em Puerto Alonso e, em 14 de julho de 1899, proclamaram a República do Acre.

A nova nação formada por apenas uma cidade (Puerto Alonso, que mudou de nome para Porto Acre) tinha Luiz Galvez como presidente. Ele criou uma bandeira e até cunhou moeda própria.

Galvez escolheu ministros e fez do seu bando um exército, nomeando coronéis e generais. Cuidou de rascunhar uma constituição e iniciou negociações diplomáticas para o reconhecimento do Acre como uma república independente. “Pelo menos um país, a Argentina, interessada em ter um aliado na região, reconheceu formalmente a nova república”, diz o professor José Dourado de Souza, chefe do departamento de história da Universidade Federal do Acre.

Para o escritor Márcio de Souza, autor de Galvez, o Imperador do Acre, o aventureiro espanhol era uma figura quixotesca, que conduziu uma revolução romântica apoiado por artistas e intelectuais que queriam libertar o Acre. “É incrível que aquilo tenha acontecido e obtido êxito diante das tropas bolivianas”, afirma o escritor.

Mas o sucesso foi curto: seis meses. Foi o tempo que as tropas do Exército brasileiro demoraram para chegar ao Acre, capturar o Quixote da Amazônia e devolver o controle da cidade à Bolívia.

No entanto, o estrago estava feito. A ousadia de Galvez mostrou às autoridades de La Paz que eles precisariam agir se quisessem manter a soberania sobre a região. E eles queriam. E agiram depressa.

Além de enviar reforços militares ao local, o governo boliviano tornou público o projeto de passar o controle do Acre para a Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, uma empresa multinacional que tinha entre seus sócios o rei da Bélgica e um parente do presidente dos Estados Unidos. A entidade recebeu de bandeja o monopólio sobre a produção e a exportação da borracha, além do direito de cobrar impostos e até de fazer as vezes de polícia.

A presença estrangeira na região acendeu fervores nacionalistas. Os brasileiros eram vistos com desconfiança e os atritos com os bolivianos passaram a ser cada vez mais freqüentes. Menos de um ano depois, um novo movimento tentaria repetir o intento de Galvez: foi a chamada “expedição dos poetas”, uma aventura ainda mais romântica, que reuniu intelectuais e estudantes amazonenses, liderados por Orlando Corrêa Lopes.

Partindo de Manaus a bordo do vapor Solimões, eles desejavam ajudar os seringueiros a “emancipar o Acre”. Sem planos e estratégias definidos, os conspiradores fracassaram e acabaram presos pelo governo brasileiro, que insistia em fazer valer o Tratado de Ayacucho.

Mais experiente, o ex-militar José Plácido de Castro havia integrado as forças federais brasileiras que lutaram na revolução de 1893, no Rio Grande do Sul, e chegara à Amazônia por volta do 1900(persiste uma dúvida sobre essa data) com planos de desbravar a floresta. Logo se tornou um figadal opositor do plano boliviano de arrendar o Acre aos americanos e passou a organizar os seringueiros para uma nova reação.

Anos mais tarde, numa das notas que escreveu a pedido do escritor Euclides da Cunha – que queria conhecer melhor a história desse conflito -, Castro relatou a gestação do movimento: “O contrato com a Bolivian Syndicate era uma completa espoliação contra os acreanos. Passei então a falar com vários proprietários de seringais da possibilidade de resistência”.

As anotações de Plácido de Castro contam a tomada de Xapuri, em 6 de agosto de 1902. O lugarejo escondido na selva estava praticamente deserto, pois naquele dia se comemorava a Independência da Bolívia e a população local havia passado a noite anterior em festa.

As poucas autoridades de plantão estavam alojadas em três casas no vilarejo. Os 33 rebeldes brasileiros, liderados por Plácido de Castro, invadiram de surpresa a vila por três flancos diferentes. O líder arrombou a casa que servia de delegacia, cadeia e prefeitura e de lá retirou armas e munição.

O sujeito que administrava o local, mal acordado, achou que o movimento tinha alguma relação com os festejos na cidade. Plácido de Castro, ao dar voz de prisão aos bolivianos, disse: “Isso não é festa. É a revolução”.

As tropas bolivianas demoraram mais de um mês para reagir. Com apenas 70 homens e poucas armas, os revolucionários enfrentaram um batalhão com mais de 200 soldados bolivianos, em 18 de setembro. E os homens de Plácido de Castro levaram a pior. “Vinte e dois mortos deixamos no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fugiram. Essa foi nossa estréia”, escreveu.

A derrota apavorou os seringueiros travestidos de soldados e provocou muitas deserções. Mas Castro não desanimou: mandou circular entre os seringais um comunicado minimizando os efeitos do desastroso combate e prosseguiu a marcha.

Em 5 de outubro, reiniciou os ataques às forças inimigas, próximo à vila de Panorama. “Empenhou-se o combate, sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras inimigas”, contou nas anotações. A batalha durou 11 dias e os rebeldes abriram valas sob a terr
a e conseguiram finalmente chegar do lado dos adversários. Obrigaram o comandante das forças bolivianas, coronel Rojas, a se entregar junto com seus 150 soldados. “Os outros, em número de 30, haviam morrido.”

O movimento ganhou força e adesões e, em 18 de novembro, as tropas de Castro dizimaram mais uma coluna boliviana na vila de Iquiry. O combate durou cinco horas e terminou com um vasto incêndio nas casas dos inimigos. Às 9 horas da manhã do dia 15 de janeiro de 1903 os rebeldes chegaram a Porto Acre. Às 2 da tarde eles já ocupavam posições a 120 metros das trincheiras inimigas.

“As nossas perdas nesse dia subiram a 50, entre mortos e feridos. A sede nos devorava”, escreveu Plácido de Castro. Apesar das dificuldades, o que se viu a seguir foi digno de cinema, com os revoltosos adentrando a área inimiga, por rio, a bordo do navio Independência, sob uma saraivada de balas.

Depois de dez dias de cerco, Porto Acre rendeu-se. “No dia 26, por ocasião de uma revista geral passada às nossas tropas, no planalto de Porto Acre, um líder seringueiro, em nome de todos os oficiais combatentes da revolução e dos civis presentes, aclamou-me governador do Acre e comandante-em-chefe das forças”, relatou Castro.

A notícia revoltou a população boliviana, que exigiu uma resposta de seu governo. O presidente Manuel Pando assumiu pessoalmente o comando do Exército e marchou para o Acre. A um passo da guerra, o Brasil agiu com diplomacia e mandou o ministro das Relações Exteriores, o barão de Rio Branco, falar com os vizinhos ofendidos.

A primeira medida tomada pelo barão foi brecar a revolução dos seringueiros, que ainda estava em curso. Foi enviada ao Acre uma expedição militar que obrigou Castro a abandonar o poder. Nas suas notas, o líder guerrilheiro falou com mágoa desse momento: “Publiquei uma ordem dissolvendo o Exército acreano, visto o general brasileiro ter invadido o Acre meridional”.

Contida a revolta, a diplomacia brasileira transferiu o conflito da selva para uma mesa de negociações. O local escolhido para selar a paz entre os dois países foi Petrópolis, no Rio de Janeiro. Ficou combinado que o Brasil ficaria com o Acre, rico em florestas e reservas de seringais, pelo qual pagaria à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas.

O Brasil comprometeu-se, ainda, a entregar áreas da fronteira do Mato Grosso e a construir uma estrada de ferro que cortasse a selva e oferecesse à Bolívia uma saída para o oceano Atlântico. As negociações, iniciadas em julho de 1903, encerraram-se quatros meses depois, com a assinatura solene do Tratado de Petrópolis.
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Fonte:
http://historia.abril.uol.com.br/2006/edicoes/terrabrasilis/mt_212140.shtml#texto
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