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Crônica de uma catástrofe vivenciada
PEDRO SIMON
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O aquecimento global provoca grande comoção. Enquanto isso, 1 em cada 6 pessoas dormirá a próxima noite com fome
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DE REPENTE , parece que o planeta se transformou no cenário de um filme dirigido por Steven Spielberg, produzido pela ONU e escrito por 600 cientistas de 40 países, sobre a devastação da natureza. Nesse documentário, somos nós os protagonistas, ora mocinhos, ora vilões. É bem verdade que muitos já são, hoje, meros figurantes nessa história dramática e morrem sem serem reconhecidos nem na tela da vida.
O quadro trágico para o futuro da humanidade foi esboçado em documento da ONU divulgado em Paris, recentemente, no IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). O relatório pinta, com tintas carregadas, os cenários do meio ambiente neste século que ainda engatinha. A principal questão é o chamado aquecimento global. A decorrente elevação dos níveis dos oceanos e dos mares na escala prevista poderá dizimar cidades litorâneas inteiras, normalmente onde se concentra grande parcela da população.
A agricultura mundial terá uma nova geografia. A estrutura produtiva de grandes regiões agrícolas deverá ser, significativamente, modificada. Isso motivará, como decorrência, outras mudanças: na estrutura fundiária, no comércio de insumos, na agricultura de exportação. A produção de alimentos e, conseqüentemente, o mapa da fome, serão, também, redesenhados. As cidades serão remodeladas.
Grandes ondas de migração, rural-urbana e rural-rural, modificarão a demografia do planeta. Inundações e secas prolongadas expulsarão populações das cidades e do campo, que ocuparão, ainda mais, as periferias dos grandes centros urbanos, num processo crescente de “favelização”.
A miséria, a fome e a violência ocuparão, ainda mais, corações e mentes, e a guerra civil não declarada, da bala perdida ou mirada, poderá ter o “alistamento” de novos batalhões, cada vez mais ao descontrole do Estado.
Mais uma vez, regiões e populações mais pobres serão as maiores vítimas.
O trabalho da ONU provoca enorme comoção, pois projeta o que cientistas identificam como catástrofe ainda para o nosso tempo. Sentimento que foi reforçado agora pela constatação do cientista-chefe do Reino Unido, David King, no sentido de que o Protocolo de Kyoto já está ultrapassado. É uma situação que, se nada for feito, será vivida por nós e, principalmente, pelos nossos filhos e netos.
Mas não há que buscar tamanha comoção para calamidades anunciadas. Já existe uma catástrofe de dimensões planetárias, embora muitos teimem em desconhecê-la. Não se trata dos furacões, dos tornados, dos maremotos, dos terremotos e dos tsunamis, cada vez mais vorazes e que atormentam ricos e pobres. É uma catástrofe que atinge, exclusivamente, os miseráveis. É a fome.
Quase 1 bilhão de seres humanos passam fome, no nosso tempo e no nosso espaço. Uma em cada 6 pessoas, as que não morrerem ainda hoje, dormirá a próxima noite com fome. Fome crônica. A mesma fome que mata um ser humano a cada menos de quatro segundos! Vinte e cinco mil por dia. Nove milhões por ano. Neste exato momento, o planeta tem algo como 130 milhões de crianças chorando -e morrendo- de fome.
A mídia tratou o relatório da Organização das Nações Unidas sobre o aquecimento global com ares de “apocalipse”, uma projeção, com data marcada, para o “final dos tempos”.
Para mim, no entanto, o melhor simbolismo para os acontecimentos que dão suporte às projeções da ONU é a “Torre de Babel”. É que deixamos, há muito tempo, de falar a mesma língua, universal, humanística. Construímos uma torre para atingir uma espécie de deus-mercado, suntuoso em bens materiais. Transformamos o semelhante em concorrente, quando não em adversário. A consciência coletiva deu lugar ao individualismo.
Mas, apesar da dimensão de tais catástrofes, continuo um otimista. Acho, inclusive, que as discussões sobre o relatório da ONU, o da catástrofe anunciada, podem se estender no sentido da busca de soluções para o problema da fome, o da catástrofe vivenciada. Quem sabe possam emergir, daí, novos paradigmas e padrões de comportamento humano.
Resgatar o verdadeiro sentido de humanidade, enquanto natureza humana, que incorpore valores outros que não a ganância e a sede de poder, mas a fraternidade e a solidariedade.
Não haverá humanidade, no seu verdadeiro sentido, enquanto a morte pela fome continuar seguindo o ritual dos ponteiros dos segundos. Quem sabe, também, possamos descobrir que ainda é possível uma revolução nos nossos sonhos de futuro.
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PEDRO SIMON , 77, advogado, é senador pelo PMDB-RS. Foi líder do governo no Senado Federal (governo Itamar Franco), governador do Rio Grande do Sul (1987-91) e ministro da Agricultura (governo Sarney).
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0204200708.htm
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