Morfina

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A injeção do dia depois

Você sofreu um assalto? Morfina intravenosa previne estresse pós-traumático

EM JANEIRO , o “New England Journal of Medicine” (362; 2) publicou uma pesquisa, de Holbrook e outros, que mostra o seguinte: os feridos de guerra que recebem rapidamente morfina por via intravenosa tendem a sofrer menos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Só para explicar, sofrer de TEPT significa, meses e anos depois do evento traumático, ser invadido por lembranças e pesadelos recorrentes que forçam a revivê-lo, perder-se em “flashbacks” que podem durar horas, sofrer psicológica e fisiologicamente quando se esbarra em algo que evoque um aspecto qualquer do evento, estar constantemente numa hipervigilância assustadiça e por aí vai. Quem sofre de TEPT tenta evitar estímulos associados ao trauma, a ponto de se tornar, às vezes, amnésico e, geralmente, de preferir um isolamento apático ao comércio com outras pessoas.

Ora, a pesquisa selecionou 696 militares feridos em combate no Iraque, para os quais eram disponíveis dados médicos detalhados.

Até dois anos depois do ferimento, mais ou menos um terço tinha desenvolvido um transtorno de estresse pós-traumático. Comparando o tratamento desse terço com o dos dois terços que não apresentaram TEPT, foi possível concluir que o uso de morfina no tratamento imediato de uma ferida reduz o risco de que, mais tarde, o paciente desenvolva um transtorno de estresse pós-traumático.

Outros analgésicos, embora suprimam a dor, não inibem o TEPT de maneira comparável com a eficácia da morfina, a qual, por ser um opioide, suprime tanto a dor física quanto a dor emocional. Com essa supressão, a memória do evento traumático não se consolida: sem aflição, a lembrança se torna fragmentária e, no fundo, trivial.

Inevitavelmente, a grande imprensa norte-americana (por exemplo, o “The New York Times” de 14/ 1) apressou-se a ampliar o alcance da pesquisa: se a morfina pode prevenir o TEPT porque ela evita a consolidação da lembrança do trauma, então ela pode ser usada para cada tipo de trauma -não só para feridas de guerra.

A lista é longa dos eventos que podem ser traumáticos e levar, às vezes, a um transtorno de estresse: agressões violentas (estupro, assalto), sequestro, encarceramento, calamidades, acidentes de carro, diagnósticos de doenças que ameaçam a vida etc. E, para que esses eventos sejam traumáticos, não é necessário ser vítima deles. É suficiente ser espectador ou, às vezes, apenas aprender que eles aconteceram.

Levando em conta que o TEPT é uma condição severa e invalidante (o que implica custos sociais e perdas econômicas), poderíamos administrar o fármaco preventivamente, a cada vez que alguém esbarra num evento potencialmente traumático. As farmácias seriam equipadas para injetar morfina intravenosa a quem se apresentasse imediatamente após um trauma. “Acabo de assistir a um assalto no farol”; nenhum problema: “Deite aqui e aperte o punho”. Seria a injeção do dia depois, ou melhor, da hora seguinte.

Mas vamos mais fundo: qualquer clínico sabe que a potencialidade traumática de um evento é singular, depende de cada um de nós. Pela unicidade de nossa constituição, acontece que eu serei traumatizado pelo atropelamento de um cachorro enquanto você precisará, no mínimo, de um ser humano ou dois. Para alguém, assistir ao noticiário sobre o terremoto no Haiti pode ser traumático. Para outro, serão mais traumáticos um filme de ficção ou um romance.

Na ausência de um critério geral do que pode ser traumático, minha sugestão é que se instale em cada cidadão uma bomba subcutânea de morfina, ativada por um botão controlado pelo usuário. Reconhecendo situações que poderiam nos traumatizar, injetaríamos imediatamente uma dose (sem perigo; há, nessas bombas, um mecanismo que impede a hipermedicação).

Imagine só. Alguém me xinga no trânsito? Bomba. Meu tio entrou na UTI? Bomba. Três da manhã e nosso filho ainda não voltou? Bomba duas vezes.
O resultado seria, certamente, uma diminuição dos transtornos de estresse pós-traumático. Agora, haveria também uma diminuição generalizada da intensidade da experiência. Mas, enfim, parodiando a sabedoria dos estóicos, na falta da felicidade propriamente dita (na qual só os ingênuos ainda acreditam), quem sabe a morfina para todos nos permita viver num mundo sem excessos, tranquilo, de dores e alegrias suavemente entorpecidas.

Moral da história: infelizmente, viver é se machucar; para não se machucar, é sempre possível deixar de viver.

CONTARDO CALLIGARIS
ccalligari@uol.com.br
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1102201022.htm
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Publicado em: SinapsesLinks
http://sinapseslinks.blogspot.com/
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A dificuldade de dizer não (ou sim)

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A dificuldade de dizer não (ou sim)

A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir

DURANTE TODA minha infância, eu dizia “não” mesmo quando queria dizer “sim”.
Usava o não como uma palavra de apoio, uma maneira de começar a falar. Minha mãe: “Vou sair para fazer compras; algo que você gostaria para o jantar?”. Eu, enérgico: “Não”, acrescentando imediatamente: “Sim, estou a fim de ovos fritos (ou sei lá o quê)”.

Os adultos tentavam me corrigir: “Então, é sim ou não?”. “Não, é sim”, eu respondia.

Entendi esse meu hábito muito mais tarde, quando li “O Não e o Sim”, de René Spitz (ed. Martins Fontes). No fim da faculdade, Spitz era um dos meus autores preferidos, o único, ao meu ver, que conciliava a psicanálise com o estudo experimental do desenvolvimento infantil. No livro, pequeno e crucial, Spitz nota que, nas crianças, o uso do “não” aparece por volta do décimo oitavo mês de vida, logo quando elas costumam falar de si na terceira pessoa, como se precisassem (e conseguissem, enfim) se enxergar como seres distintos dos outros.

Para Spitz, a aquisição da capacidade de dizer “não” é um grande evento da primeira época da vida: a conquista da primeira palavra que serve para dialogar e não só para designar um objeto. Mas, cuidado, especialmente no segundo ano de vida, o “não” teimoso da criança não significa que ela discorde do que está lhe sendo proposto ou imposto: a criança diz “não” para afirmar que, mesmo ao concordar ou obedecer, ela está exercendo sua própria vontade, a qual não se confunde com a do adulto.

Em suma, durante muito tempo, eu persisti na atitude de meus dois anos. Mais tarde, consegui me corrigir. Mas em termos; sobrou-me uma paixão pelas adversativas: mal consigo dizer “sim” sem acrescentar um “mas” que limita meu consentimento. É um jeito de dizer que aceito, mas minha aceitação não é incondicional. “Vamos ao cinema?”. “Sim, mas à noite, não agora.”

O uso do sim e do não, no discurso de cada um de nós, pode ser um indicador psicológico valioso. Mas, para isso, é preciso distinguir entre “sim” e “não” “objetivos”, que têm a ver com a questão da qual se trata (quero ou não tomar café ou votar nas próximas eleições), e “sim” e “não” “subjetivos”, que são abstratos, ou seja, que expressam uma disposição de quem fala, quase sem levar em conta o que está sendo negado ou afirmado.

Se o “não” subjetivo é um grito de independência, o “sim” subjetivo é uma covardia, consiste em concordar para evitar os inconvenientes de uma negativa que aborreceria nosso interlocutor.

Alguns exemplos desse “sim” covarde (e, em geral, objetivamente mentiroso). “Respondeu à minha carta?” “Sim, já mandei.” “Gostou de minha performance?” “Sim, adorei.” “Quer me ver de novo?” “Sim, te ligo amanhã.” Mas também: “Você vai assinar a petição para expulsar os judeus do ensino público?” “Claro, claro, estou assinando.”

Acontece que dizer “não” é arriscado. A confusão com o outro, aquela confusão que ameaça a primeira infância e contra a qual se erguia nosso “não” abstrato e rebelde, é substituída, com o passar do tempo, por mil dependências afetivas: “Desde os meus dois anos, não sou você, não me confundo com você, existo separadamente, mas, se eu perder seu amor (sua amizade, sua simpatia, sua benevolência), quem reconhecerá que existo? Será que posso existir sem a aprovação dos outros?”.

Em suma, o sim subjetivo é um consentimento abstrato (o objeto de consenso é indiferente e pode ser monstruoso), pois o que importa é agradar ao outro, não perder sua consideração. A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir.

Por sua vez, nossa covardia fomenta explosões negativas, tanto mais violentas quanto mais nossa concordância foi preguiçosa. À força de dizer “sim” para que o outro goste de mim, eu corro o perigo de me perder e, de repente, posso apelar à negação abstrata, espalhafatosa e violenta, só para mostrar que não me confundo com o outro, penso com a minha cabeça.

Bom, Spitz tinha razão, o uso do não e do sim permitem o diálogo humano. Mas é um diálogo que (sejamos otimistas) nem sempre tem a ver com as questões que estão sendo discutidas; ele tem mais a ver com uma necessidade subjetiva: digo “não” para me separar do outro ou digo “sim” para obter dele um olhar agradecido. Nos dois casos, tento apenas alimentar a ilusão de que existo.

CONTARDO CALLIGARIS
ccalligari@uol.com.br
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709200921.htm
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Publicado em: SinapsesLinks
http://sinapseslinks.blogspot.com/
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