Beco sem saída

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Beco sem saída

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Na política, chegamos a níveis de imoralidade assumida incompatível com princípios éticos
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DRAUZIO VARELLA

NOS QUASE dez anos desta coluna, leitor, nunca escrevi sobre política. Adotei essa conduta por reconhecer que há profissionais mais preparados para fazê-lo e por considerar que médicos envolvidos em educação na área de saúde pública devem ficar distantes das paixões partidárias.

No entanto, os últimos acontecimentos de Brasília foram tão desconcertantes e chocaram a nação de tal forma, que ignorá-los seria omissão. No trato da administração pública, chegamos a níveis de desfaçatez e de imoralidade assumida incompatíveis com os princípios éticos mais elementares.

Para os que ganham a vida com o suor do próprio rosto, é revoltante tomar consciência de que parte dos impostos recolhidos ao comprar um quilo de feijão é esbanjada, malversada ou simplesmente desapropriada pela corja de aproveitadores instalada há décadas na cúpula da hierarquia do poder.

Mais chocante, ainda, é a certeza de que os crimes cometidos por eles e seus asseclas ficarão impunes, por mais graves que sejam. Do brasileiro iletrado ao mais culto, todos nós temos consciência de que o rigor de nossas leis pune apenas os mais fracos. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico parar na cadeia, diz o povo, com toda razão.

Uma noite, na antiga Casa de Detenção de São Paulo, ao fazer a distribuição de um gibi educativo sobre Aids, perguntei, à porta de um xadrez trancado, quantos estavam ali. Um rapaz de gorrinho de lã, curvado junto à pequena abertura da porta, respondeu que eram 17. Diante de minha surpresa por caberem tantos em espaço tão exíguo, começou a reclamar das condições em que viviam. Às tantas, apontou para a TV casualmente ligada no horário político, no fundo da cela, no qual discursava um candidato:

-Olha aí, senhor, dizem que esse homem levou 450 milhões de dólares. Se somar o que todos nós roubamos a vida inteira, os 7.000 presos da cadeia, não chega a 10% disso.

Essa realidade, que privilegia a impostura e perdoa antecipadamente os deslizes cometidos pelos que deveriam dar exemplo de patriotismo e de respeito às instituições, serve de pretexto para comportamentos predatórios (se eles se locupletam, por que não eu?), gera descrédito na democracia e, muito mais grave, a impressão distorcida de que todo político é mentiroso e ladrão.

Considerar que a classe inteira é formada por pessoas desonestas tem duas consequências trágicas: votar nos que “roubam, mas fazem” e afastar da política cidadãos que poderiam contribuir para o bem-estar da sociedade.

De que adianta documentar os crimes se os criminosos ficarão impunes e retornarão nas próximas eleições ungidos pela soberania do voto popular?

Como renovar a classe política num país em que quase dois terços da população não têm acesso à informação escrita, em que empresários financiam campanhas de indivíduos inescrupulosos, comprometidos apenas com os interesses de quem lhes deu dinheiro, e no qual as mulheres e os homens de bem se negam a disputar cargos eletivos, porque não querem ser confundidos com gente que não presta?

É evidente que os políticos brasileiros não são os únicos responsáveis pelo estado a que as coisas chegaram. Antes de tudo, porque muitos são honestos e bem-intencionados; depois, porque o clientelismo que os cerca é uma praga que nos aflige desde os tempos coloniais. Os que se aproximam dos políticos para pedir empregos públicos, nomeações para cargos estratégicos, favores em negócios com o governo ou para oferecer-lhes suborno, por acaso são mais dignos?

Esse é o beco sem saída em que nos encontramos: os partidos aceitam a candidatura de indivíduos desclassificados, os empresários financiam-lhes a campanha (muitas vezes com os assim chamados recursos não declaráveis), o eleitor vota neles porque “não faz diferença, já que todos são ladrões” ou porque podem conceder-lhe alguma vantagem pessoal, a Justiça não consegue nem sequer afastar do serviço público os que são flagrados com as mãos no cofre e, para completar a equação, as pessoas de bem querem distância da política.

A esperança está na prática da democracia. Se a Justiça não pune os que se apropriam dos bens públicos, a liberdade de imprensa é a arma que nos resta, a única que ainda os assusta.
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1508200926.htm
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Publicado em: SinapsesLinks
http://sinapseslinks.blogspot.com/
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54 Anomia

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O CAMINHO PARA A ANOMIA

“As crises de legitimidade sempre têm algo a ver com a incapacidade das
sociedades em criar lealdade a seus valores básicos; se esses valores se
tornam autodestrutivos, a crise torna-se aparente.”
Ralf Dahrendorf – http://pt.wikipedia.org/wiki/Ralf_Dahrendorf

O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas bem de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem, onde traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nesta época e a era que antecedeu o nazismo.

Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anomia, que costuma anteceder regimes totalitários.

Afinal, os índices de criminalidade estavam em alta nesses países desenvolvidos, ameaçando a paz e a ordem dos cidadãos.

Em primeiro lugar, é interessante definir o que exatamente o autor pretendia com o uso do termo anomia, resgatado na sociologia por Durkheim, em seu
estudo sobre o suicídio. Dahrendorf estava preocupado com a incidência
crescente da impunidade, cuja conseqüência é a anomia, “quando um número elevado e crescente de violações de normas torna-se conhecido e é relatado, mas não é punido”. Com isso, ele não pretende justificar os crimes individuais, mas apenas reconhecer que a “anomia é uma condição social, que pode fazer brotar vários tipos de comportamento, como ocorreu durante a queda de Berlim, em 1945”. Logo, a conexão entre anomia e crime não é causal. “A anomia fornece uma condição básica, onde as taxas de crimes tendem a ser elevadas”.

No dicionário Aurélio, o termo anomia está definido como “ausência generalizada de respeito a normas sociais, devido a contradições ou divergências entre estas”. Isso reforça o que o sociólogo tinha em mente, ao afirmar que “a anomia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando houver uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo em agirem de acordo com essas normas e objetivos”. No estado de anomia, as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. As violações de normas simplesmente não são mais punidas.

“Esse é um estado de extrema incerteza, no qual ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas situações”. As normas são válidas se e quando elas forem tanto eficazes como morais, ou seja,
julgadas corretas. A anomia é, pois, “uma condição em que tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero”. Todas as sanções parecem ter desaparecido neste quadro social, e isto leva ao desaparecimento do poder legítimo, transformado em poder arbitrário e cruel. O “contrato social”, entendido aqui como normas aceitas e mantidas através de sanções impostas pelas autoridades concernentes, é rasgado, restando o vácuo em seu lugar.

Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada mais parece ser punido.

Uma das causas que levam a esta anomia está na imagem de homem romântica, porém errada, que muitos alimentam desde Rousseau e seu “bom selvagem”.

Essas pessoas “supunham que bastava as pessoas serem liberadas das restrições impostas a suas ações pela história, pela cultura e pela sociedade, para que pudessem viver, felizes e em paz, para todo o sempre”. Para Dahrendorf, “essa imagem do homem é um dos marcos principais no caminho para a anomia”.

Ainda que bem intencionados, esses românticos teriam buscado Rousseau, mas encontrado Hobbes, com a luta de todos contra todos.

Quando as ligaduras, os “liames culturais associados com certas unidades básicas às quais os indivíduos pertencem, em virtude de forças fora de seu alcance, mais do que escolha própria”, estão enfraquecidas, o mundo tende a ser mais desorientador e desconcertante. Não é fácil achar substitutos para tais ligaduras, que sustentam os principais valores de uma sociedade.

O enfraquecimento progressivo desses valores morais, assim como a impunidade, o declínio na validade das normas sociais, são ingredientes perigosos que podem levar à anomia. Os costumes e as leis são complementares: quanto mais sólidos os costumes, mais eficientes tendem a ser as leis. O assustador é quando ambos – costumes e leis – perderam o valor.

Não há como ler o livro de Dahrendorf sem pensar na situação atual do Brasil.

A impunidade é crescente, e os valores básicos estão completamente deturpados ou enfraquecidos. Políticos cometem crimes à luz do dia, nada acontece, e os próprios eleitores ainda votam neles novamente. A crença de que as leis não funcionam mais é generalizada. O país caminha, infelizmente, para a anomia descrita pelo sociólogo. Algo precisa ser feito.

No próprio livro, podemos ter alguma idéia do que precisa ser feito.

Em primeiro lugar, é importante acertar o diagnóstico do problema. Não basta repetir que a causa dos males reside somente na economia, e que
necessitamos apenas de políticas sociais, pois isso não é verdade. O buraco é bem mais embaixo. Vivemos uma crise de valores morais, uma falência das
instituições necessárias para a manutenção da lei e da ordem, e um problema de pobreza agravado, muitas vezes, pela própria ação do Estado.

Mas nem tudo está perdido. E a anomia ainda pode ser evitada, mesmo que leve tempo. Basta lembrarmos que os Estados Unidos e a Inglaterra, principais países citados por Dahrendorf no livro, deram a volta por cima.

Reagan e Thatcher, é verdade, deram importantes contribuições. Mas elas não seriam suficientes nem possíveis sem todo um trabalho de base que tivesse alterado a mentalidade do povo e seus valores morais, abrindo o caminho para as mudanças institucionais.

Foge ao escopo deste artigo focar nas soluções do problema. Mas não custa, ainda que en passant, apelar para o sucinto resumo do próprio autor.

“A resposta para o problema de lei e ordem pode ser colocada numa única
expressão: construção das instituições”. O autor teria, com certeza, o apoio
do prêmio Nobel de economia, Douglas North, que vem batendo incansavelmente nesta tecla. É mais fácil falar que fazer, claro. Mas isso não muda o fato de que compreender o que deve ser feito já é um bom começo. Estamos longe disso ainda, em minha opinião. Nem todos entendem o valor das instituições. E é preciso explicar também que isto não significa que quanto mais instituições, melhor. O outro perigo, além da anomia, é a hipernomia, o crescimento desordenado de normas, sanções e instituições, que gera apenas mais incerteza e desconfiança.

Com isso em mente, podemos concluir nas palavras do próprio Dahrendorf:

“Somente através de um esforço consciente para construir e reconstruir as
instituições podemos esperar garantir nossa liberdade em face da anomia”.
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Colaboração: Afonso Hochreiter.’. – São Paulo – SP – Brasil
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