Maus Pagadores

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03/07/2009

Oficiais de Justiça na Rússia descobrem um jeito de combater os maus pagadores

Marie Jégo
Como combater os maus pagadores? A Federação Russa dos Oficiais de Justiça conta com a Igreja. Fim das famílias endividadas, dos motoristas desobedientes, das pessoas relutantes em pagar pensão alimentar. Eles serão “repreendidos” e “culpados” por padres ortodoxos, transformados em auxiliares dos oficiais de justiça.

Um acordo de cooperação foi assinado na quarta-feira (24 de junho) entre a Federação e o setor do patriarcado ortodoxo encarregado das relações entre o exército e a polícia. “Representantes da Igreja vão exercer uma influência espiritual sobre os maus pagadores, vão lhes dizer que é inaceitável viver endividado”, declarou o chefe dos oficiais, Artur Parfentchikov, citado pelo jornal “Kommersant” (edição de 24 de junho). Desde a queda do comunismo, a Rússia vive um forte renascimento religioso. A Igreja Ortodoxa recuperou seus locais de culto, sua pompa, seu rebanho. Sua influência é grande: nos restaurantes, onde menus “jejum” são disponíveis para a época da Quaresma, nas caixas de correio, onde prospectos oferecem bênçãos de escritórios, de apartamentos, de carros.

A Igreja é a instituição mais respeitada pelos russos, que em compensação têm uma confiança muito limitada no coletor de impostos ou no policial. Onde o Estado fracassa em se fazer ouvir, o poder espiritual vai apoiá-lo. Em um primeiro momento, os maus pagadores serão convocados para um sermão individual. O peso na consciência fará o resto. “Não pagar suas dívidas equivale, segundo os preceitos da Igreja, a pegar o que não lhe pertence, ou seja, roubar”, estipula o texto do acordo.

Os padres foram convidados a pregar sobre esse tema durante os ofícios. “Nós diremos a nossos fiéis que é possível apanhar seu dinheiro com amor”, contou ao jornal “Kommersant” o padre Dmitri Smirnov, encarregado das relações entre a polícia e o patriarcado. Há muito a ser feito. Segundo uma pesquisa do instituto VTsIOM, 52% das famílias entrevistadas reconhecem que, com a crise, os pagamentos estão cada vez mais difíceis.

Artur Parfentchikov, o chefe dos oficiais de justiça, é um incansável cruzado do endividamento. Em 2006, esse colega de universidade do presidente russo, Dmitiri Medvedev, se destacou ao ordenar a publicação na Internet da lista dos insolventes, sem resultados. Dessa vez, a aliança entre os oficiais de justiça e os padres promete ser mais produtiva.

Em abril de 2009, em Tosno, uma pequena cidade dos arredores de São Petersburgo, os que se acostumaram a não pagar a pensão alimentar foram convocados para uma pequena conversa com um batiushka (padre). O efeito foi “sensacional”, contou a assessoria de imprensa dos oficiais. E imediato: “Um foi buscar o dinheiro logo em seguida, dois outros retomaram a vida junto de suas famílias, e outros ainda prometeram saldar suas dívidas assim que possível”.

Como a Rússia tem diversas religiões, foram feitas experiências similares entre os budistas da Buriácia (Sibéria Oriental), da Calmúquia (Cáucaso) e entre os muçulmanos do sul da Federação. Com sucesso, ao que parece. Bonzos e imames não mediram esforços para convencer seus fieis. O não pagamento de uma dívida tem suas consequências: ele expõe o muçulmano à privação do hadji (peregrinação a Meca), e torna o carma do budista mais pesado.

Até ali, a aliança do poder temporal e espiritual seduz. A polícia rodoviária também quer fazer parte. Em Penza e Samara, oficiais de polícia e membros do clero patrulharam juntos. Na Tchetchênia, cartazes com versículos do Corão evocando a fragilidade da vida logo serão instalados ao longo das estradas.

Para dar certo, a luta contra as infrações ao código das estradas deverá se aplicar a todos. A começar pelo número um tchetcheno, Ramzan Kadyrov, que voa pelas estradas de seu “Tchetchenistão”, escoltado por cerca de trinta luxuosos 4 x 4. O mufti (chefe religoso) tchetcheno bem que poderia incentivá-lo a ter um maior autocontrole.

No contexto da luta contra os maus pagadores, seria preciso também repreender o oligarca Oleg Deripaska. Descrito em 2008 como “o homem mais rico” da Rússia, próximo do Kremlin, ele é agora o mais endividado dos empresários russos. Desde o início da crise, o Estado o socorreu, cedendo-lhe um crédito de US$ 4,5 bilhões (R$ 8,7 bilhões).

Apesar disso, os operários de sua indústria de cimento em Pikaliovo (região de São Petersburgo) ficaram meses sem salários ou indenizações. Finalmente, eles bloquearam a estrada principal em 2 de junho, causando um engarrafamento de 400 km. A única intervenção do primeiro ministro, Vladimir Putin, que desceu do céu com um gordo cheque, acalmou os ânimos.

Pikaliovo poderá servir de exemplo. Segundo o ministro das regiões, o clima é de descontentamento na federação: 42 mil pessoas tomaram parte nas ações de protesto em abril de 2009, contra 13 mil em dezembro de 2008. Alguns sociólogos esperam tumultos. Outros rejeitam esse cenário. O povo russo, pouco organizado, considerado paciente, não é muito vingativo, dizem eles. Além disso, caso seja necessário, sempre será possível pedir socorro ao clero.

Tradução: Lana Lim
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Fonte:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2009/07/03/ult580u3794.jhtm
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52 Mãe,

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Discurso do Senador Pedro Simon
Plenário do Senado – Brasília, 13/02/2007
Carta aberta à mãe do menino João Hélio, 6 anos, morto de forma cruel por
assaltantes no Rio de Janeiro, dia 07/02/2007.

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CARTA ABERTA PARA ROSA CRISTINA

Mãe,

Conheço o tamanho da tua dor, que é a mesma do Élson e da Aline. Para mim,
é, também, uma dor vivida. A perda de um filho é, sem dúvida, o maior de
todos os sofrimentos. Por que tamanha provação? Versões contemporâneas de
Abraão? “Tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à
terra de Moriá e ofereça-o, aí, em holocausto, sobre uma montanha que eu vou
lhe mostrar”. Por que, então, o anjo de Javé não te ajudou a desatar aquela
simples fivela, de um cinto dito de segurança, que permitiria devolver aos
teus braços de mãe, o pequeno João Hélio, o Isaac dos nossos tempos, para
que ele permanecesse entre nós, dividindo e multiplicando sua alegria de
vida? “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”

É nestes momentos que nos sentimos ínfimos, diante dos desígnios do Criador.
Pior: é, também, nestes mesmos momentos que sabemos o quanto a humanidade se
distanciou da Sua obra. Disseste, “eles não têm coração”. Eles têm! É que
nós utilizamos os dons que nos são ungidos e criamos, como novos deuses, a
inteligência artificial, enquanto desdenhamos os sentimentos mais sublimes e
naturais, aqueles que brotam, somente e semente, em corações fertilizados
pelo amor e pela fraternidade. Ao contrário, permitimos que florescesse, em
muitos corações, nas favelas e nos palácios, a barbárie. No Rio de Janeiro,
em São Paulo, em Brasília, em Washington ou em Bagdá. É a humanidade,
enquanto gênero humano, que se distancia dos seus próprios conceitos de
benevolência, de clemência e de compaixão.

Que tuas lágrimas não se percam, apenas, nos índices de audiência e nos
discursos de conveniência. Ao contrário, que elas mobilizem corações e
mentes para a reconstrução dos valores que perdemos nessa travessia terrena.
Em outros tempos, não tão distantes, os valores morais e culturais se
construíam sobre o tripé família, escola e igreja. Hoje, a família foi
dilacerada. A escola, sucateada. A igreja, excomungada. No lugar, um novo, e
perverso, tripé: a droga, a rua e a arma. A droga, como estímulo. A rua,
como palco. A arma, como poder.

Ainda naqueles outros tempos, as famílias se reuniam para contar, e para
trocar, suas histórias de vida. Era um grande círculo de amizade e
fraternidade. Família, escola e igreja, ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
Respeito, aprendizado e bênção. Pais heróis. Hoje, o círculo familiar deu
lugar a um semicírculo vicioso. No centro, a TV, e os novos heróis são
aqueles que mais atiram, que mais batem, que mais matam. É a arte imitando a
vida. Ou incentivando a morte. Ou vice-versa.

Vim, vi e envelheci. Mas, por mais que possam tentar tripudiar o meu
discurso e a minha prática, porque, dizem, obsoletos, não mudei. Continuo
vivendo os valores que herdei. Da família, da escola e da igreja. Para mim,
não há diferença, na dor, entre o favelado que puxa o gatilho nas esquinas e
o dirigente que manda despejar mísseis sobre cidades inteiras. Quantas serão
as mães de Bagdá, que choram a morte de seus pequenos inocentes, meninos da
guerra, trucidados em nome do poder e da ganância. Pior: “em nome de Deus”.
São, todos, bárbaros, cruéis, desumanos.

É essa a minha luta: resgatar o verdadeiro sentido de humanidade. Que os
homens retomem o projeto do Criador. Onde reina a barbárie, de nada vão
adiantar novas leis que não se cumprem; novas punições, que servirão, tão
somente, para alimentar a impunidade. Há que se ressuscitar as letras
mortas. E, isso se faz, somente, com o grito estridente das ruas.

Como bem disseste, o teu filho não pode ser mais um número nas estatísticas
da violência. Como em outros casos tão recentes, temo que a tua imolação
seja esquecida, quando a comoção dobrar a esquina. Talvez, a mesma esquina
em que foste abordada, tão covardemente. Mas, a tua dor, não. Nunca mais. A
dor por um filho é eterna. Ela nos acompanha, até que o encontremos, de
novo, em outra dimensão. Por isso, as tuas lágrimas têm que irrigar a
indignação, que hoje toma conta de estádios, de ruas e de lares. Das
famílias, das escolas e das igrejas. Quem sabe o sacrifício do teu filho
signifique o renascimento do tripé que suporta outros valores, que não a
barbárie.

Somos parceiros, nessa dor. Em tempo: quando conversares com o João Hélio,
nos teus sonhos de mãe, diga-lhe que um menino alegre, feliz, bonito e
inteligente como ele irá procurá-lo, entre todos os anjos. Diga-lhe que eles
têm muito em comum na inocência de criança. Ele partiu há alguns anos, mas,
nas minhas mais belas lembranças, continua o mesmo guri que me encantava a
alma. Também partiu precoce, como todas as vítimas de algum tipo de
violência. Diga-lhe que esse guri se chama Matheus. Eu já conversei com ele,
nos meus sonhos de pai.

Um abraço fraterno,
Senador Pedro Simon
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Colaboração: Irenita Forster – São Paulo-SP – Brasil
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