Testemunho
Fim de tarde. A maioria dos trabalhadores olha no relógio e se prepara para voltar para casa. Eu ainda tinha mais umas 5 horas de jornada até poder retornar. Há dias em que não conseguimos pensar positivamente. Até o desnível das calçadas incomoda. O dia ensolarado de outono não me animava. Resolvi tomar um lanche para enfrentar o próximo turno no Hospital Municipal. O resto da gripe ainda me provocava acessos de tosse e alguns espirros. Sentia-me doente , apesar de ser apenas um resfriado passageiro. Aborrecida com os filhos mal resolvidos, com o chefe sempre impertinente, com as recepcionistas às vezes incompetentes, com as irmãs em briga pelo inventário do papai. Pensei que se ele estivesse vivo tudo seria diferente. Era bom por a culpa de todos os aborrecimentos na partida do pai.
Pedi um pão de queijo já me sentindo culpada pelo excesso das calorias que iria ingerir mas achando que uma vitamina de mamão não iria preencher o vazio que estava sentindo e o tédio diante de tantos problemas.
Distraída e brava comigo mesma por nem ter tido coragem de ir para uma padaria mais agradável ouvi uma voz infantil:
– Mamãe, posso pegar um chiclete?
Animei-me com a inocência do pedido e me virei.
A criança era um menino, de seus 7 ou 8 anos, em uma cadeira de rodas que eu nunca havia visto antes. Uma miniatura. As rodas eram apropriadas para o tamanho da criança de modo que ela mesma se locomovia e estava se dirigindo para o balcão dos doces.
A mãe bem jovem, aparentava uns trinta e poucos anos. Rosto sereno e meigo.
Olhei para a criança, percebi seus pés mal formados de nascença e de repente descobri o que realmente eu estava fazendo naquela hora ali, exatamente naquela padaria.
Como sempre, o universo conspira a nosso favor, basta prestarmos atenção.
Ainda que sejamos ateus convictos podemos observar tudo o que a vida nos oferece de bom e que nunca ou quase nunca agradecemos. Imediatamente lembrei-me do poema da gratidão do Divaldo Pereira Franco, orador espírita. Nesta belíssima oração, ele agradece a Deus por tudo que recebeu e que usufruiu: as mãos, os pés, a voz, os ouvidos, os olhos. Agradece o emprego, a família, a casa e até o cão que lhe faz companhia.
De repente meu humor se transformou e passei a lembrar de todas as graças que possuo. Meus filhos, saudáveis. Minha casa, em ordem. Meu carro novo. Meu emprego estável e onde adoro trabalhar. Minhas secretárias que são amigas e parceiras. Meus colegas, a maioria amigos, tanto do consultório como do Hospital. Minhas irmãs atrapalhadas mas que amo de paixão. Minha mãe complicada mas saudável. Minha vizinhança amigável. Academia nota dez. Corridas de rua e treinos em dia. Corpo perfeito e com saúde de ferro. Meu querido pai que faleceu, mas sofreu por pouco tempo depois de 80 anos de saúde sem intercorrência médica. Dívidas bancárias com resgates previsíveis a curto prazo e em compensação, carro novo, casa arrumada. Família normal. Tudo perfeito.
Como podemos esquecer destes benefícios todos e nos deixar abalar por assuntos banais?
Sai da padaria achando a tarde maravilhosa, a calçada ajeitada. Sorri para todos os conhecidos do caminho.
Senti-me leve e feliz. Tantas bênçãos a vida me ofertou que quaisquer que fossem minhas contrariedades naquele momento eram todas ínfimas e passageiras. Respirei profundamente e até o ar poluído aqui da Bela Vista pareceu um bálsamo para meus pulmões ainda fragilizados pelo vírus da gripe.
Afinal, o que significa mesmo uma gripe?
Edna Sbrissa, 11 de junho de 2008.